do +Augusto de Franco via +Normann Kallmus
No grande swarming do dia 17 de junho de 2013 (o 17J em São Paulo, no Rio de Janeiro e em várias capitais e outras cidades do país) a violência praticada por grupos isolados (desencadeada, talvez, por agentes infiltrados, provocadores, bandidos e manifestantes imbuídos de espírito adversarial mesmo), foi lateral, pontual, pouco significativa.
Um dia antes (16 de junho) publiquei um longo texto sobre o tema, intitulado GUERRA OU PAZ?, em que chamava a atenção para esse risco da instrumentalização das manifestações por grupos que costumam adotar a tática de provocar o confronto.
Não foi isso, entretanto, que ocorreu, nem no 17J, nem nos dias seguintes (18 e 19 de junho). A movimentação se espalhou por todo o país e, na maioria dos casos, houve violência praticada por pequenos grupos isolados e indivíduos fora de sintonia com a imensa maioria dos participantes. Em geral foram grupos e indivíduos que tentaram invadir prédios de governos e do legislativo ou que tentaram furar os bloqueios erigidos pela polícia. Esses grupos e indivíduos atuam quando as manifestações já estão no fim, em alguns casos fazendo saques, depredando e ateando fogo em viaturas, lojas comerciais, agências bancárias e, até, bancas de jornais. A maioria dos manifestantes nem presencia as cenas de violência e só fica sabendo depois, pela televisão. Em alguns casos, porém, houve conflito entre os que queriam manter o caráter pacífico das manifestações e alguns meliantes. Em São Paulo foi notável o esforço de alguns manifestantes para impedir a depredação da sede da prefeitura.
É claro que tudo isso é péssimo: tanto a violência em si, quanto a sua repercussão. Tenho afirmado que a ocupação pacífica e a festa - e não a luta rancorosa - é que podem quebrar o script da Matrix. Um comentário do Nilton Lessa a um post com esse conteúdo que publiquei ontem (19/06) no Facebook, diz tudo: "Nada seria mais revolucionário, subversivo e perturbador para o mundo hierárquico. Festejar e não lutar; conviver e não combater; mover-se e não estagnar; viver-e-morrer e não eternizar".
Cada pessoa que interage nesse grande processo social convulsivo em que estamos imersos pode ajudar a coibir a violência. Ela não será totalmente evitada, por certo, mas pode novamente voltar a ser apenas incidental, fortuita, lateral, pontual. Além de carregar cartazes e gritar, com perdão do termo, a "palavra-de-ordem" SEM VIOLÊNCIA, ajudaria muito, a meu ver, ocupar pacificamente determinados espaços públicos e fazer festas.
Ocupar espaços públicos (por exemplo, uma praça ou várias praças) é mais condizente com a natureza das manifestações do que organizar passeatas. A ocupação pode ensejar mais facilmente a auto-organização e a autorregulação dos conflitos. A passeata tem itinerário e logo aparecem pessoas e grupos querendo dirigir "a massa" para algum lugar (por exemplo, para os portões de algum palácio).
Felizmente esses aprendizes de condutores de rebanhos não têm se dado muito bem. Uma prova disso é que as passeatas em geral se bifurcam e as pessoas não obedecem muito aos que querem mandá-las seguir por determinados caminhos, às vezes até usando megafones. De qualquer modo, passeatas pressupõem sempre algum tipo de condução, de acordo prévio sobre o itinerário com a polícia. Mas aí vem o problema: quem fará tal acordo em nome de todos, considerando que as multidões que têm se reunido não estão sendo convocadas de modo centralizado nem estão subordinadas a alguma direção?
O inovador dessa movimentação incrível (e inédita) que estamos vivendo no Brasil é que ela não tem organização top down, não tem direção, foi convocada de modo distribuído P2P e com a utilização de midias interativas. Ou seja, a despeito dos sinceros esforços dos que querem convocá-los e orientá-los, os eventos estão sendo organizados pelos próprios participantes, pessoalmente ou clusterizados em múltiplos grupos que não podem ser representados por ninguém.
O grupo que lançou o movimento pelo Passe Livre não representa a movimentação que está em curso no país, nem mesmo em São Paulo. Aliás, não existe um movimento, existem várias movimentações sintonizadas, que se sinergizam mutuamente. Essas multidões - atenção: não massas - que se aglomeram e enxameiam em todo o país não são representadas pelo movimento do Passe Livre, nem por qualquer comitê, coordenação, direção de algum movimento hierárquico. O que está ocorrendo é mais a manifestação de uma fenomenologia da interação em mundos sociais altamente conectados do que uma dinâmica participativa assembleísta que possa ser administrada e conduzida por estruturas centralizadas por meio de seus agentes (dirigentes e militantes).
Estamos diante de um fenômeno de rede. Mas parece que a ficha ainda não caiu na cabeça daquela parte da militância que tem a tara de organizar os outros e conduzi-los para algum lugar. Uma prova disso é a ansiedade para ter um foco, um pauta de reivindicações, um programa definido para negociar com os governos... Se continuar assim não tardará a surgir algum esperto propondo a criação de uma nova organização, de um comitê nacional, de comitês estaduais, de comitês municipais, e até de um novo partido (com a maior boa intenção do mundo, é claro, para não desacumular, para não desperdiçar o imenso potencial que foi despertado).
Por tudo isso penso que estamos diante, neste exato momento, de uma bifurcação importante. Não tenho a menor ansiedade ou preocupação com a continuidade do que alguns chamam de "o movimento" e que, na verdade, são múltiplas manifestações: elas foram, são e serão o que serão. O que foi feito (não me refiro propriamente à redução do preço das passagens) já foi feito (e modificou a sociedade na sua intimidade, em profundidade maior do que podemos agora alcançar). O que será feito, será feito e acontecerá o que poderá acontecer, ao sabor dos ventos, no imprevisível fluxo interativo percorrendo múltiplos caminhos. As redes distribuídas não são instrumentos para realizar a mudança: elas já são a mudança!
O que me preocupa é a eventual criação de barreiras, filtros, armadilhas de fluxos (como o são as organizações hierárquicas) que tentem bloquear ou condicionar a livre interação: por exemplo, iniciativas que tentem erigir comitês, realizar eleições para escolher representantes, reunir assembléias para aprovar pautas, plataformas, programas e adotar modos de regulação que criem artificialmente escassez, introduzindo as inevitáveis disputas de tendências e luta de facções et coetera. Se tomarmos o ramo da bifurcação que leva a isso, começaremos a viagem de volta para algum lugar do passado.
Se tomarmos o outro ramo da bifurcação, porém, confiando na rede e nos abandonando ao fluxo interativo, continuaremos antecipando futuro no presente. Não há nada melhor do que isso. E para isso, nada melhor do que ocupar pacificamente os espaços públicos e festejar. A festa, o riso, a alegria, desarmam os hard feelings, convertem inimizade em amizade política, configuram ambientes favoráveis à colaboração (e não à competição) e questionam profundamente os esquemas de poder que estão na raiz dos males que levaram às multidões às ruas.
Se as pessoas se põem a dançar e cantar, muitos milagres podem acontecer. Até mesmo governos podem cair - mas isso está longe de ser o mais importante. Só é muito importante para quem sonha em entrar em governos. O potencial desse gigante que começou a acordar é muito maior do que isso. De que adianta entrar em governos se não se muda o velho sistema, ou seja, se se mantém o velho padrão de relação Estado-sociedade? Em pouco tempo os novos ocupantes estarão reproduzindo o mesmo comportamento que hoje condenam nos velhos atores...
O que está em jogo, neste momento, no Brasil e em vários lugares do mundo, é uma mudança mais profunda: uma verdadeira reinvenção da política ou uma nova invenção (a terceira) da democracia.
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